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Oficiais como essenciais à Justiça


Por Thiago Aguiar de Pádua (*)


Encontra-se em pauta a discussão sobre a PEC 23/2023, que busca transformar os oficiais de justiça em carreira típica de estado, além de sua inserção como função essencial à justiça ao lado da Defensoria Pública, Advocacia (privada e pública) e Ministério Público, discussão que merece toda nossa atenção.

Num primeiro momento podem surgir críticas as mais diversas, desapegadas da atenção sensível e do rigor acadêmico, pois o senso comum, e as más línguas, costumam maldizer que os oficiais de justiça seriam meros "entregadores de atos oficiais". Visão que não poderia estar mais equivocada!


Essa concepção não apenas é impregnada de ignorância, mas absolutamente derivada de uma perspectiva tacanha na camada mais baixa dos níveis de compreensão do fenômeno jurídico. Os oficiais de justiça possuem uma história de pelo menos quatro mil anos, presentes em diferentes tradições jurídicas, como juízes, advogados e membros do ministério público.


Além disso, estiveram presentes na nossa 1ª Constituição, a carta imperial de 1824, e no código criminal do império, motivando duas datas comemorativas, feito inédito e também muito raro, algo que nenhuma outra carreira jurídica possui.

Só para citar um exemplo, o Rio de Janeiro instituiu, na gestão do governador Nilo Batista, o dia 16 de dezembro como dia do oficial de justiça avaliador, em referência à data de promulgação do Código Criminal do Império de 1830, que previa considerável distinção ao Oficial de Justiça, como:


1) o porte de armas aos oficiais quando em diligência (artigo 298).

2) Fixação de pena agravada para o caso de violência física durante a diligência, inclusive autorizando antecipadamente a legítima defesa em caso de morte (artigos 116 e 118).

3) Poder de polícia, assim como os militares, para realizar prisões sem ordem escrita para apresentar o suspeito ao juiz (artigo 181).

4) Responsabilidade do oficial pela aceleração (não retardamento) no cumprimento de ordem de Habeas Corpus, sob pena de perder a liberdade e suspensão do trabalho (artigo 184).


A seu turno, em termos nacionais, o Parlamento brasileiro elegeu uma data diferente, inclusive anterior, estabelecendo o dia 25 de março como o dia nacional do oficial de justiça, data de instituição da Constituição Imperial de 1824, que expressamente menciona os oficiais de justiça nos artigos 156 e 157.


Nos dias atuais, os oficiais cumprem os mais diversos atos, de sensível importância para a ordem democrática e para o estado de direito, sendo relevante o conhecimento jurídico de seus membros para a proteção de direitos fundamentais, quando cumprem atos e atestam fatos em seus mandados.


Numa metáfora bastante feliz, livremente adaptada, Rui Barbosa mencionava que a constituição seria o juiz calado, e que por sua vez o juiz constitucional seria a voz da constituição. Aqui podemos observar que os oficiais de justiça são a voz do juiz em movimento, quando cumprem mandados de desocupação, de prisão, de caráter possessório ou petitório, de medidas protetivas contra violência doméstica e familiar, de fornecimento de medicamento ou internação urgente em UTI, de permissão ou proibição de direito de reunião ou deliberação democrática e de assembleia, dentre tantos e tantos outros.


Mas não são apenas a vox constitutionis em movimento, são garantidores dos diversos direitos fundamentais, algo que a voz, por si só, não conseguiria fazer. A PEC 23/2023 busca inserir os oficiais de justiça como "função essencial à justiça", e podemos começar exatamente por aqui. Função essencial à justiça: o que é isto? Poderíamos iniciar pela metáfora e terminar com a técnica, o que parece ser uma boa sugestão reflexiva geral, e depois específica.


Essência, ou essencial, nos permite imaginar "o mel da fulô de jatobá" de Geraldo Azevedo, "o amor sem anestesia", de Chico Cesar, "o ataque cardíaco do verso" de Mano Brown, os "olhos de ressaca" da narrativa do Bruxo do Cosme Velho, a "tira de couro" das narrativas shakespearianas e suassunianas do Mercador da Compadecida, algo que, reconheçamos, se retirado do contexto ou da vida, impossibilitaria o sentido e tornaria inválida a própria pretensão de existência. O sentimento de que "falta" algo.


Se convocássemos Rudolf von Jhering para este conclave, ele nos recordaria de que o direito pode ser "a política da força", já que direito sem força seria um conceito vazio, vindo daí sua famosa frase sobre o problema da norma estatal sem aparato coercitivo: "chama que não queima, luz que não brilha", muito embora nem todos os imperativos de força estatal sejam normas jurídicas, uma vez que só alcançam essa condição os imperativos abstratos, não os concretos, já que o Direito, e a norma, por consequência, exigem generalidade, uniformidade e igualdade.


Ainda detectando o sentimento de "falta", a partir do qual falamos sobre as funções essenciais à justiça, sem as quais falta algo a ela (justiça), ainda com Jhering, em Der Kampf ums Recht (A luta pelo direito),"a Justiça sustenta em uma das mãos a balança, com a qual ela pesa o direito, enquanto na outra segura a espada, com que ela o executa. A espada sem a balança é a força bruta, a balança sem a espada é a impotência do direito". Equivale a dizer: judiciário sem função essencial à justiça nem sequer é poder.


Saindo da metáfora, e passando para a técnica, podemos ingressar no reino da teoria do direito para uma reflexão inicial desde a estrutura e da função, como pontuando por Bobbio sobre a genialidade de Kelsen. A dicotomia kelseniana que remonta a Kant (Sein e Sollen), mas que também se conecta ao legado huminiano (is e ought), divide o "reino da necessidade" do "reino da liberdade" (natureza/sociedade), sendo certo que o primeiro contrapõe dois sistemas de representação da realidade: "um deles fundado em relações de causalidade, o outro, em relações de imputação", que exige de qualquer pretensão crítica a abordagem cientificamente jurídica (desde a linguagem da ciência jurídica) a partir de suas bases.


Poderíamos asseverar, como premissa, o postulado de Claus-Wilhelm Canaris sobre os direitos fundamentais, e, por consequência, estabelecer a justiça/judiciário como seu protetor, considerando, ainda, que eles (os direitos fundamentais) não possuiriam apenas uma proibição de intervenção (Eingriffsverbote), mas seriam dotados do dever de guardiania (Schutzgebote), caracterizada pela proibição de excesso (Übermassverbot), e igualmente pela proibição omissiva (Untermassverbot), num contexto em que às funções essenciais à justiça seriam imprescindíveis para esse mister.


Em termos específicos, reflitamos sobre os oficiais de justiça nesse contexto, e a resposta só poderá ser positiva, pois a atuação dos oficiais de justiça, não apenas como braços e vozes da magistratura, visão simplista e reducionista, caracteriza atuação como efetivos profissionais do direito que devem ser possuidores de amplo e profundo conhecimento jurídico para proteger direitos fundamentais nas esferas positivas de guardiania e negativa contra omissões indevidas, assegurando a adoção das médicas necessárias à concretização dos direitos fundamentais.


Também neste ponto nos fornece algum auxílio o mesmo Canaris desde seu genial escrito sobre Função, estrutura e falsificação das teorias jurídicas, especialmente no tópico 6, quando menciona os chamados "vícios das teorias jurídicas", em termos de eficácia, inconsistência e incompatibilidade, pois se a premissa estabelece a existência das funções essenciais à justiça, e dentro delas a inclusão dos oficiais de justiça, somente pelo questionamento de sua inadequação no plano teórico-constitucional se permitiria um afastamento hermenêutico, o que não é o caso.


E isto porque a inserção dos Oficiais de Justiça no seleto rol constitucional das funções essenciais à justiça é aprovada pelo tríplice teste de Canaris (eficácia, consistência e compatibilidade), algo que ajudará a fortalecer todo o sistema de justiça, se nossa concepção for protetiva dos direitos e garantias fundamentais, progressivamente fortalecidos para além da simbologia de duas importantes datas comemorativas.


* Thiago Aguiar de Pádua é doutor em Direito, professor da Faculdade de Direito da UnB (Universidade de Brasília), autor dos livros "O Common Law Tropical: o caso Marbury v. Madison brasileiro" (Ed. D’Plácido, 2023, no prelo); "Ao vencedor o Supremo: o STF como Partido Político 'sui generis' (Ed. D’Plácido, 2021); "A Balzaquiana Constituição” (Trampolim Jur., 2018)". Ex-assessor de ministro do STF, advogado em Brasília e Santa Catarina.


Fonte: Publicado originalmente no portal Conjur

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